"Mestres Cucas" podem acabar sacrificando o sabor em nome da foto perfeita

Comendo com os olhos: culinária para fotografar

Pete Wells - The New York Times

Sábado, 19 De Julho De 2014 às 12h30

"Mestres Cucas" podem acabar sacrificando o sabor em nome de um prato perfeito

"Mestres Cucas" podem acabar sacrificando o sabor em nome de um prato perfeito

As máquinas fotográficas estão muito mais presentes nas mentes dos mestres-cucas hoje em dia do que há uma década, quando a maioria das fotos de comida era tirada em estúdio debaixo de lâmpadas abrasadoras.

Câmeras digitais que capturam imagens em alta resolução com pouca luz abriram o jogo para qualquer pessoa sentada num restaurante, de um blogueiro com uma câmera DSLR montada num tripé a um usuário do Instagram pilotando o iPhone com a mão.

Assim que esses equipamentos começaram a entrar na internet e em contas na mídia social, a fotografia de alimentos deixou de ser apenas uma ilustração para um livro de culinária ou revista. Agora a imagem em si é a história.

"Hoje a cultura da comida se espalha tanto pelo visual quanto pelo boca a boca ou resenhas escritas", afirmou David Sax, que mergulhou de cabeça no poder das tendências alimentares em seu último livro. "Virou um meio visual. Nós primeiro comemos com os olhos".



A tecnologia mudou profundamente a fotografia da comida, é claro, mas também modificou o alimento.

No nível mais óbvio, novas ideias e técnicas passam zunindo pelo mundo. Depois que Dominique Ansel apresentou seu "cronut", mescla de croissant e sonho em maio, demorou menos de duas semanas para surgir uma cópia em Melbourne, Austrália.

A fotografia digital de comida também é uma ferramenta barata de marketing. Um instantâneo de um prato novo publicado na noite anterior pode provocar um aumento nas reservas na tarde seguinte.

Chefs que servem pratos prontos para as câmeras veem seus salões cheios de divulgadores voluntários, que trabalham de graça e deixam dinheiro na mesa quando vão embora.

Para melhorar ainda mais a coisa para os restaurantes, a mídia social premia os fotógrafos que publicam imagens atraentes e pune quem faz o oposto.

Experimentei uma amostra dessa vergonha quando tuitei a imagem de uma truta servida por um restaurante. Eu queria explicar que o prato estava uma bagunça só, tão bem apresentado quanto um cesto de roupa suja.

O Twitter reagiu à feiura da imagem, não à cauda partida da truta.

Quer você use Twitter, Instagram ou seu próprio blog, a mensagem é clara: não tire fotografias se for para sujar a barra do lugar; não existe pressão semelhante sobre os autores de críticas online.

Já os chefs estão ávidos por entrar no jogo, atuando como estilistas e assistentes de estúdio.

Bonjwing Lee, fotógrafo viajado e autor do blog Ulterior Epicure, afirmou que alguns chefs pediram conselhos quanto a "ajustes que poderiam fazer aos salões de jantar" para os fregueses baterem fotografias melhores.

Entre os restaurantes influentes que perseguem um estilo contemporâneo, cada prato é destinado a dois públicos. Um é você, com o guardanapo no colo. O outro é o clube global cujos membros, conferindo telefones ou notebooks, constituem uma galeria invisível na sala de jantar.

A câmera culinária nesse sentido poderia ser criada praticamente em qualquer estilo, mas o que vem crescendo durante a revolução digital na fotografia alimentar é o movimento New Nordic (Novo Nórdico). A culinária dos aventurosos mestres-cucas escandinavos produzem pratos com um visual suave. Invariavelmente montados em peças de barro, madeira ou pedra, os ingredientes parecem ter sido trazidos por uma onda ou soprados pela brisa da floresta. O estilo deixa claro que os chefs andaram estudando imagens no Instagram de René Redzepi.



Mas não fica claro se experimentaram a culinária de Redzepi. Nem sempre, mas com certa frequência, os sabores podem não ser tão vívidos quanto as imagens; eles são espectrais, desbotados. Plantas e outros ingredientes às vezes parecem escolhidos pelo tamanho e cor e não pelo sabor. A flor da borragem ou a folha da batata-doce raramente vem salpicada com vinagrete, o que a deixaria mais apetitosa, mas também poderia criar um brilho indesejado nas lentes, levando-a a murchar antes da chance de ser fotografada.

As combinações parecem juntadas a esmo, como se os pratos fossem determinados não pelo paladar do chef, mas pelo acaso. Que espécie de culinária é essa?

Estou intrigado com isso há meses e agora acho que matei a charada: não se trata de culinária, é uma montagem.

"Os projetistas de cozinha dizem que aconteceu uma mudança enorme na forma como as cozinhas são projetadas" nos últimos dez anos, declarou o mestre-cuca David Kinch. Segundo afirmam seus projetistas, os restaurantes estão colocando "mais balcões e menos área para cozinhar, mais espaço para montagem, para que a comida possa ser mais bem composta".

Como Kinch destacou, muitas cozinhas usam métodos de cozimento mais lentos e precisos, então para começo de conversa a comida nunca fica muito quente. Porém, distribuído em ladrilhos e impiedosamente enfeitado com folhas, croutons, espumas e molhos (preparados com emulsificadores para nunca desmancharem), até mesmo o filé na brasa ficaria tão frio quanto um sanduíche de mortadela.

Curiosamente, câmeras que capturam e transmitem imagens num instante estão sendo utilizadas para fotografar alimentos destinados a pairar indefinidamente em animação suspensa. Isso é o que agora passa por culinária excelente ou pelo menos importante.

O filé saindo da chapa nos empolga porque vemos as gorduras brilhando na superfície e os sucos se formando no prato. A cor do bife também nos emociona por causa do seu marrom profundo, e sabemos que superfícies tostadas, assadas, seladas e caramelizadas significam sabores profundos. Só que as máquinas fotográficas detestam comida marrom.

Sax observa que mesmo assim o Instagram está coalhado de imagens de bifes na chapa. Quando provamos algo espetacular, continuamos querendo tirar sua foto. Espero que os chefs se lembrem disso ou teremos de nos acostumar a comer coisas que nossas bocas nunca gostarão tanto quanto nossas câmeras.

Fonte: The New York Times News Service/Syndicate

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